domingo, 6 de julho de 2008

O vinagre mais caro da história

Nos anos 80, mais de dez garrafas de vinho do século 18 foram vendidas por centenas de milhares de dólares cada uma. Detalhe: eram todas falsas

Assim como o atletismo, a falsificação de vinho é um esporte antigo e com diversas modalidades. A mais tradicional delas é a troca de rótulo pura e simples, que começou na Roma Antiga. Os fraudadores estampavam vinhos diversos com o selo da região de Pompéia, uma espécie de Bordeaux da época. A prática atravessou os séculos. Um dos casos mais famosos aconteceu durante a Segunda Guerra, quando o glutão nazista Hermann Goering, braço direito de Adolf Hitler, encomendou caixas de Mouton para seus jantares. Os orgulhosos franceses colocaram os rótulos certos nas garrafas erradas, e Goering bebeu vinhos ordinários achando que eram o néctar dos deuses. Uma variação dessa modalidade é a troca do conteúdo. O falsário bebe o vinho caro, enche a garrafa com um baratinho, passa adiante e embolsa a diferença. Outra adulteração clássica é o aquecimento do vinho a fim de acelerar seu envelhecimento. Na segunda metade do século 20, a falsificação de vinhos começou a ganhar sofisticação — e a técnica atingiu seu apogeu em 1985, quando uma garrafa de Château Lafite da longínqua safra de 1787 foi vendida por 156 000 dólares. Foi a garrafa de vinho mais cara da história, um recorde ainda a ser batido. Por quase 20 anos, foi considerada autêntica, um testemunho da longevidade de um dos melhores vinhos do mundo. Mas se tratava de uma fraude completa. A história está contada no excelente The Billionaire’s Vinegar (“O vinagre do bilionário”, numa tradução livre), do jornalista americano Benjamin Wallace.

O Lafite 1787 fez parte do conjunto de garrafas mais famoso do século 20, formado por vinhos que teriam pertencido ao americano Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos. Nos anos anteriores à Revolução Francesa, Jefferson serviu como embaixador em Paris. Acabou se tornando o primeiro enófilo americano. Ele comprava caixas dos ícones da região de Bordeaux (sua favorita) e acumulava os vinhos em sua adega. Como escrevia freqüentemente sobre os vinhos que bebia e comprava, sua paixão ficou gravada na história. Encontrar uma garrafa que pertenceu a Jefferson passou a ser considerado uma espécie de busca ao cálice sagrado dos aficionados de vinhos antigos. Além do caráter histórico, beber um exemplar do fim do século 18 seria uma chance única de experimentar um vinho produzido antes da praga que arrasou as plantações de vinhedos franceses no século seguinte. As garrafas vendidas nos anos 80 tinham a inscrição de suas iniciais (Th.J.). Além do Lafite vendido ao bilionário americano Malcolm Forbes num leilão da Christie’s, quatro garrafas foram parar nas mãos do não menos bilionário William Koch. Ele pagou 500 000 dólares pelo conjunto. Outros exemplares com as iniciais de Thomas Jefferson foram vendidos em leilões ou em lojas especializadas.

O mercado de vinhos antigos praticamente inexistia até que a Christie’s entrou no circuito, nos anos 70. Só assim foi possível amenizar o drama da autenticidade: com a chancela da casa de leilões, as suspeitas dos compradores diminuíram e as vendas decolaram. O executivo Michael Broadbent, um fanático que catalogou 85 000 avaliações de vinhos, foi o responsável por encontrar adegas antigas para a Christie’s e garantir sua procedência. Após Broadbent fuçar em castelos e mansões da aristocracia européia, as velhas adegas começaram a rarear. Foi quando apareceu um misterioso alemão chamado Hardy Rodenstock. Ex-produtor musical, Rodenstock espantou o mundo do vinho ao anunciar a descoberta de uma adega repleta de vinhos que haviam pertencido a Thomas Jefferson. Segundo ele, os exemplares haviam sido encontrados em Paris — quem pedia mais detalhes obtinha respostas vagas. O alemão procurou Broadbent em busca da confirmação da origem dos vinhos. Conseguiu. Em seguida, a Christie’s organizou o leilão do Lafite 1787. E Rodenstock tornou-se uma estrela.

Por quase duas décadas, o alemão manteve seu status de celebridade. Rodenstock organizava megadegustações, em que centenas de vinhos raros eram oferecidos a um pequeno grupo de privilegiados. Talvez sua popularidade seja explicada pelo fato de que proporcionava esses eventos e não cobrava um centavo sequer. Os mais famosos foram as degustações verticais, em que eram bebidas dezenas de safras de um mesmo vinho. Em algumas delas, Rodenstock abria uma garrafa de Jefferson, para júbilo dos comensais. Os narizes mais importantes do mundo do vinho compareciam e rasgavam elogios ao alemão. O conceituado crítico americano Robert Parker disse que “sua paixão pela história do vinho é irrefutável”. Seu prestígio era tão grande que a célebre fabricante de taças Riedel permitiu que Rodenstock desenhasse uma taça exclusiva para a degustação do Château D’Yquem, o incomparável branco doce de Bordeaux. O brilho no mundo dos vinhos raros deu a ele acesso à alta sociedade européia. Um de seus amigos era o príncipe Albert, de Mônaco.

Havia, porém, uma nuvem de mistério envolvendo Rodenstock e suas degustações. Os garçons nunca deixavam a rolha dos vinhos antigos na mesa. Algumas das raridades vendidas por ele não poderiam ter existido (ele alegava ter encontrado garrafas grandes de Château Pétrus de uma safra em que o castelo não produziu garrafas grandes, por exemplo). As fontes de seus achados nunca eram reveladas. Para aumentar a desconfiança, um de seus amigos, o comerciante William Sokolin, comprou uma das garrafas jeffersonianas e, num episódio bizarro, deixou a garrafa quebrar em seu colo no meio de um jantar. Pareceu de propósito. Recebeu 212 000 dólares de seguro. Seriam Rodenstock e seus amigos uma fraude completa?

Aos poucos, a autenticidade de seus vinhos começou a ser formalmente questionada. Em 1985, logo após o leilão do Château Lafite 1787, a fundação responsável por administrar o museu de Thomas Jefferson lançou dúvidas quanto à sua procedência. Não havia nenhum registro do rótulo entre as posses do estadista americano — e o homem costumava registrar tudo. Embriagados pelos vinhos gratuitos oferecidos por Rodenstock, porém, os especialistas ignoraram as acusações. Até que o alemão Hans-Peter Frericks, um dos compradores das garrafas de Thomas Jefferson, tentou leiloá-las na Sotheby’s, maior concorrente da Christie’s. O especialista da casa de leilões analisou a adega e constatou que diversas garrafas tinham grande probabilidade de ser falsificadas. Numa atitude rara, a Sotheby’s recusou-se a leiloá-las. Intrigado, o vendedor decidiu enviar as garrafas de Thomas Jefferson a um laboratório. A análise da bebida indicou que o vinho era, provavelmente, da década de 60 — mas do século 20, não do 18. A reputação de Rodenstock começava a desmoronar.

O alemão retrucou dizendo que o conteúdo da garrafa analisada havia sido adulterado e que um complô estava sendo orquestrado contra ele. Foi quando William Koch, o bilionário que pagara 500 000 dólares por quatro garrafas jeffersonianas, decidiu investigar seu lote. Intrigado com as especulações acerca da procedência dos vinhos de Rodenstock, Koch contratou um ex-investigador do FBI para tirar a prova. Começou, então, uma busca por provas contra o vendedor alemão. Logo o araponga descobriu que até o nome de Rodenstock era falso. Ele chamava-se, na verdade, Meinard Görke. A prova final da fraude veio quando os investigadores de Koch analisaram a inscrição das iniciais de Thomas Jefferson gravadas na garrafa. Percebeu-se que só poderiam ter sido feitas por um aparelho moderno. Talvez até uma broca de dentista. Com as conclusões da investigação em mãos, Koch moveu um processo contra Rodenstock-Görke e outros comerciantes de vinhos antigos. O caso ainda não foi resolvido, mas alguns dos principais nomes do mundo do vinho saíram chamuscados do episódio. A casa de leilões Christie’s, responsável por vender as garrafas de Thomas Jefferson, foi acusada de conluio com Rodenstock. O mais impressionante é que críticos como a inglesa Jancis Robinson e o americano Robert Parker simplesmente não perceberam que bebiam vinhos adulterados. “As garrafas de Jefferson foram o grande exemplo de como as pessoas se tornam sugestionáveis quando o assunto é vinho”, escreve Wallace. Talvez a grande fraude, portanto, não seja a bebida

Nenhum comentário: