quarta-feira, 13 de julho de 2011

Leo huberman - A história da Riqueza do Homem

DO FEUDALISMO AO CAPITALISMO

c A P Í T U L O I

Sacerdotes, Guerreiros e Trabalhadores

OS DIRETORES dos filmes antigos costumavam fazer coisas estranhas. Uma das mais curiosas era o seu hábito de mostrar as pessoas andando de carro, depois descerem atabalhoadamente e se afastarem sem pagar ao motorista. Rodavam por toda a cidade, divertiam-se, ou se dirigiam a seus negócios, e isso era tudo. Sem ser preciso pagar nada. Assemelhavam-se em muito à maioria dos livros da Idade Média, que, por páginas e páginas, falavam de cavaleiros e damas, engalanados em suas armaduras brilhantes e vestidos alegres, em torneios e jogos. Sempre viviam em caste-los esplêndidos, com fartura de comida e bebida, Poucos indícios há de que alguém devia produzir todas essas coisas, que armadu-ras não crescem em árvores, e que os alimentos, que realmente crescem, têm que ser plantados e cuidados. Mas assim é. E, tal como é necessário pagar por uma corrida de táxi, assim alguém, nos séculos X a XII, tinha que pagar pelas diversões e coisas boas que os cavaleiros e damas desfrutavam. Também alguém tinha que fornecer alimentação e vestuário para os clérigos e padres que pregavam, enquanto os cavaleiros lutavam. Além desses pre-gadores e lutadores existia, na Idade Média, um outro grupo: os trabalhadores. A sociedade feudal consistia dessas três classes — sacerdotes, guerreiros e trabalhadores, sendo que o homem que trabalhava produzia para ambas as outras classes, eclesiástica e militar. Isto era muito claro, pelo menos para uma pessoa que vi-veu naquela época, e que assim comentou o fato:

“For the knight and eke the clerk
Live by him who does the work.”

Qual era a espécie de trabalho? Nas fábricas ou usinas? Não, simplesmente porque ainda não existiam. Era o trabalho na terra, cultivando o grão ou guardando o rebanho para utilizar a lã no vestuário. Era o trabalho agrícola, mas tão diferente de hoje que dificilmente o reconheceríamos,
A maioria das terras agrícolas da Europa ocidental e cen tral estava dividida em áreas conhecidas como “feudos”. Um feudo consistia apenas de uma aldeia e as várias centenas de acres de terra arável que a circundavam, e nas quais o povo da aldeia tra-balhava. Na orla da terra arável havia, geralmente, uma extensão de prados, terrenos ermos, bosques e pasto. Nas diversas locali-dades, os feudos variavam de tamanho, organiza. ção e relações entre os que os habitavam, mas suas caracterís ticas principais se assemelhavam, de certa forma.
Cada propriedade feudal tinha um senhor. Dizia.se co mu-mente do período feudal que não havia “senhor sem terra, nem terra sem um senhor”, O leitor já viu, com certeza, fo. tografias dos solares medievais. É sempre fácil reconhecê-los porque, fos-se um castelo ou apenas uma casa grande de fazenda, eram sem-pre fortificados. Nessa moradia fortificada, o senhor feudal vivia (ou o visitava, já que freqüentes vezes possuía vários feudos; al-guns senhores chegavam mesmo a possuir cen tenas) com sua família, empregadas e funcionários que admi. nistravam sua propriedade.

Pastos, prados, bosques e ermos eram usados em comum, mas a terra arável se dividia cm duas partes. Uma, de modo geral a terça parte do todo, pertencia ao senhor e era chamada seus “domínios”; a outra ficava em poder dos arrendatários que, então, trabalhavam a terra. Uma característica curiosa do sis tema feudal é que as terras não eram contínuas, mas dispersas em faixas, mais ou menos assim como na Fig. 1:


Figura 1

A terra arrendada por A se espalha por três campos e está dividida em faixas, nenhuma das quais vizinha da outra. Da mesma forma, o arrendatário B, e assim sucessivamente. Nos primórdios do sistema feudal, o mesmo se dava com as proprie-dades senhoriais; também eram dividida em faixas esparsas, en-tremeando-se a outras, mas nos últimos anos a tendência foi de formar um só bloco.

A cultura em faixas foi típica do período feudal. É claro que era muito dispendiosa e, passadas algumas centenas de anos, foi totalmente posta de lado. Hoje, sabemos muito mais sobre as plantações alternadas, fertilizantes, e mil e uma formas de conse-guir maior produção do solo, do que os camponeses feudais. O grande progresso, na época, foi a substituição do sistema de dois por três campos. Embora os camponeses feudais não soubessem ainda quais as colheitas que melhor se sucederiam, a fim de não esgotar o solo, na verdade sabiam que o cultivo do mesmo tipo, todos os anos, no mesmo local, era ruim, e assim mudavam o plantio, de campo para campo, todo ano. Num ano, a colheita pa-ra a alimentação, trigo ou centeio, seria feita no campo I, paralelo à colheita para o fabrico de bebida, a cevada, no campo II en-quanto o campo III permanecia de pousio, “posto de ludo”, para um descanso de um ano. Eis o esquema aproximado de uma cul-tura em três campos:

1º ano 2º ano 3º ano

Campo I Trigo Cevada Em descanso
Campo II Cevada Em descanso Trigo
Campo III Em descanso Trigo Cevada

Eram essas, portanto, as duas características importantes do sistema feudal. Primeiro, a terra arável era dividida em duas partes, uma pertencente ao senhor e cultivada apenas para ele, enquanto a outra era dividida entre muitos arrendatários; segun-do, a terra era cultivada não em campos contínuos, tal como ho-je, mas pelo sistema de faixas espalhadas. Havia uma terceira característica marcante — o fato de que os arrendatários traba-lhavam não só as terras que arrendavam, mas também a propri-edade do senhor.

O camponês vivia numa choça do tipo mais miserável. Trabalhando longa e arduamente em suas faixas de terra espalhadas (todas juntas tinham, em média, uma extensão de 6 a 12 hectares, na Inglaterra, e 15 a 20, na França), conseguia arrancar do solo apenas o suficiente para uma vida miserável. Teria vivido me-lhor, não fora o fato de que, dois ou três dias por semana, tinha que trabalhar a terra do senhor, sem pagamento. Tampouco era esse o único trabalho a que estava obrigado. Quando havia pres-sa, como em época de colheita, tinha primeiro que segar o grão nas terras do senhor. Esses “dias de dádiva” não faziam parte do trabalho normal, Mas isso ainda não era tudo. Jamais houve dú-vida quanto à terra mais importante. A propriedade do senhor ti-nha que ser arada primeiro, semeada primeiro e ceifada primeiro. Uma tempestade ameaçava fazer perder a colheita? Então, era a plantação do senhor a primeira que deveria ser salva. Chegava o tempo da colheita, quando a ceifa tinha que ser rapidamente con-cluída? Então, o camponês deveria deixar seus campas e segar o campo do senhor. Havia qualquer produto posto de lado para ser vendido no pequeno mercado local? Então, deveriam ser o grão e vinho do senhor os que o camponês conduzia ao mercado e ven-dia — primeiro. Uma estrada ou uma ponte necessitavam repa-ros? Então, o camponês deveria deixar seu trabalho e atender à nova tarefa.
O camponês desejava que seu trigo fosse moído ou suas uvas esmagadas na prensa de lagar?

Poderia fazê-lo — mas tratava-se do moinho ou prensa do senhor e exigia-se pagamento para sua utilização- Eram quase ilimitadas as imposições do se-nhor feudal ao camponês. De acordo com um observador do sé-culo XII o camponês “nunca bebe o produto de suas vinhas, nem prova uma migalha do bom alimento; muito feliz será se puder ter seu pão preto e um pouco de sua manteiga e queijo...”
“If he have fat goose or hen,
Calce of white flour in his bin,
‘Tis his lord who all must win.”
O camponês era, então, um escravo? Na verdade, chamava-se de “servos” a maioria dos arrendatários, da palavra latina “ser-vus” que significa “escravo”. Mas eles não eram escravos, no sentido que atribuímos à palavra, quando a empregamos. Mesmo se tivesse havido jornais na Idade Média, nenhum “anúncio? co-mo o seguinte, que apareceu no Charleston Courier em 12 de a-bril de 1828, teria sido encontrado em suas páginas: “Uma famí-lia valiosa... como jamais se ofereceu para venda, consistindo de uma cozinheira de cerca de 35 anos, sua filha com cerca de 14 e seu filho, cerca de 8. Serão vendidos juntos ou apenas em parte, conforme interessar ao comprador.”
Esse desmembramento de uma família de escravos negros, segundo a vontade do dono, não aconteceria numa família uni-da, sem depender do desejo do senhor feudal. Se o escravo era parte da propriedade e podia ser comprado ou vendido em qual-quer parte, a qualquer tempo, o servo, ao contrário, não podia ser vendido fora de sua terra. Seu senhor deveria transferir a posse do feudo a outro, mas isso significava, apenas, que o ser-vo teria novo senhor; ele próprio permanecia em seu pedaço de terra. Esta era uma diferença fundamental, pois concedia ao servo uma espécie de segurança que o escravo nunca teve. Por pior que fosse o seu tratamento, o servo possuía família e lar e a utilização de alguma terra. Como tinham, realmente, segurança, acontecia por vezes que uma pessoa livre, mas que por um mo-tivo ou outro se encontrava arruinada, sem lar, terra ou comida, “oferecer-se-ia [a algum senhor, como servo], uma corda no pescoço e uma moeda na cabeça.”3
Havia vários graus de servidão, mas foi difícil aos historia-dores delinear todos os matizes das diferenças entre os diversos tipos. Havia os “servos dos domínios”, que viviam permanente- mente ligados à casa do senhor e trabalhavam em seus campos durante todo o tempo, não apenas por dois ou três dias na sema-na. Havia camponeses muito pobres, chamados “fronteiriços”, que mantinham pequenos arrendamentos de um hectare, mais ou menos, à orla da aldeia, e os “aldeões”, que nem mesmo pos-suíam um pequeno arrendamento, mas apenas uma cabana, e deveriam trabalhar para o senhor como braços contratados, em troca de comida.
Havia os “vilãos” que, ao que parece, eram servos com maiores privilégios pessoais e econômicos. Distanciavam-se muito dos servos, na estrada que conduz à liberdade, gozavam de maiores privilégios e menores deveres para com o senhor. Uma diferença importante, também, está no fato de que os de-veres que realmente assumiam eram mais precisos que os dos servos. Isso constituía grande vantagem, porque então os vilãos sabiam qual a sua exata situação O senhor não podia fazer-lhes novas exigências, a seu bel-prazer. Alguns vilãos estavam dis-pensados dos “dias de dádiva” e realizavam apenas as tarefas normais de cultivo. Outros simplesmente não desempenhavam qualquer tarefa, mas pagavam ao senhor uma parcela de sua produção, de forma muito semelhante ao que fazem, hoje, os nossos meeiros. Ainda outros não trabalhavam, mas faziam seu pagamento em dinheiro. Esse costume se desenvolveu com o passar do, anos e, posteriormente, tornou-se muito importante.

Alguns vilãos eram quase tão abastados como homens li-vres, e podiam alugar parte da propriedade do senhor, além de seus próprios arrendamentos. Assim, havia alguns cidadãos que eram proprietários independentes e nunca se viram obrigados às tarefas do cultivo, mas pura e simplesmente pagavam uma taxa a seu senhorio. A situação dos cidadãos, aldeões e servos con-funde-se através de muitas fases. É difícil estabelecer, exata-mente, quais eram e determinar a posição real de cada classe.
Nenhuma descrição do sistema feudal pode ser rigorosa- mente precisa, porque as condições variavam muito, de lugar para lugar. Não obstante, há certeza sobre alguns pontos fun-damentais, em relação a praticamente todo o trabalho escravo do período feudal.
Os camponeses eram mais ou menos dependentes. Acredi-tavam os senhores que existiam para servi-los. Jamais se pen-sou em termos de igualdade entre senhor e servo, O servo tra-balhava a terra e o senhor manejava o servo. E no que se rela-cionava ao senhor, este pouca diferença fazia entre o servo e qualquer cabeça de gado de sua propriedade. Na verdade, no século XI, um camponês francês estava avaliado em 38 soldos, enquanto um cavalo valia 100 soldos! Da mesma forma que o senhor ficaria aborrecido com a perda de um boi, pois dele ne-cessitava para o trabalho da terra, também o aborrecia a perda de qualquer de seus servos — gado humano necessário ao tra-balho na terra. Por conseguinte, se o servo não podia ser ven-dido sem a terra, tampouco poderia deixá-la. “Seu arrenda-mento era chamado ‘título de posse’ mas, pela lei, o. título de posse mantinha o servo, não o servo ao título.”4 Se o servo tentava fugir e era capturado, podia ser punido severamente — mas não havia dúvida de que tinha de voltar. Nos anais do Tribunal do Feudo de Bradford, para o período de 1349-1358, há o seguinte sumário: “Ficou provado que Alice, filha de William Childyong, serva do senhor, reside em York; por con-seguinte que seja levada [presa]”5
Além disso, como o senhor não queria perder qualquer de seus trabalhadores, havia regras estipulando que os servos ou seus filhos não poderiam casar-se fora dos domínios, exceto com permissão especial. Quando um servo morria, seu herdei-ro direto podia herdar o arrendamento, em pagamento de uma taxa. Eis um exemplo, tal como consta nos mesmos anais do Tribunal: “Robert, filho de Roger, filho de Richard, que pos-suía um terreno e 3 hectares de terra arrendada, está morto. E logo John, seu irmão e herdeiro, tomou posse das terras [ar-rendamento], para si e seus herdeiro; de acordo com o costu-me do feudo... e paga ao senhor 3 s. [shilings] de multa por entrada,”6
Na citação acima, são importantes as palavras “de acor-do com o costume do feudo”. Constituem a chave para a com-
preensão do sistema feudal, O “costume do feudo” significava, então, o que a legislação do governo de uma cidade ou condado significa hoje. Costume, no período feudal, tinha a força das leis no século XX. Não havia um governo forte na Idade Média ca-paz de se encarregar de tudo. A organização, no todo, baseava-se num sistema de deveres e obrigações do princípio ao fim. A posse da terra não, significava que pudéssemos fazer dela o que nos agradasse, como hoje. A posse implicava deveres que ti-nham que ser cumpridos. Caso contrário, a terra seria tomada. As obrigações que os servos tinham para com os senhores, e as que o senhor devia ao servo — por exemplo, proteção em caso de guerra — eram todas estabelecidas e praticadas de acordo com o costume. Acontecia, sem dúvida, que às vezes o costume era transgredido, tal como, hoje em dia, as leis. Uma briga entre dois servos seria resolvida no tribunal do senhor — de acordo com o costume. Uma briga entre servo e senhor tendia sempre a ser solucionada favoravelmente ao senhor, já que este podia ser o juiz da disputa. Não obstante, houve casos em que um senhor, que freqüentemente violava os costumes, era chamado a se ex-plicar, por sua vez, a seu senhor imediato. Esse fato se verifica-va particularmente na Inglaterra, onde os camponeses podiam ser ouvidos no tribunal real.
O que aconteceria em caso de disputa entre os senhores de dois feudos? A resposta a essa pergunta nos leva a um outro fato interessante sobre a organização feudal. O senhor do feu-do, como o servo, não possuía a terra, mas era, ele próprio, ar-rendatário de outro senhor, mais acima na escala, O servo, al-deão ou cidadão “arrendava” sua terra do senhor do feudo que, por sua vez, “arrendava” a terra de um conde, que já a “arren-dara” de um duque, que, por seu lado, a “arrendara” do rei. E, às vezes, ia ainda mais além, e um rei “arrendava” a terra a um outro rei! Essa estruturação do poder está bem patenteada no seguinte excerto dos arquivos de um tribunal de justiça da In-glaterra em 1279: “Roger de St. Germain arrenda uma casa e suas dependências [faixa de terra] de Robert de Bedford, o-brigado ao pagamento de 3 d. ao já mencionado Robert de quem ele arrenda, e ao pagamento de 6 d a Richard Hylches-ter, em lugar do citado Robert que deste arrenda. E o men-cionado Robert arrenda de Alan de Chartres, pagando-lhe 2 d. por ano, e Alan, de William, o Mordomo, e o mesmo Wil-liam de lord Gilbert de Neville, e o mesmo Gilbert, de lady Devorguilla de Baliol, e Devorguilla, do rei da Escócia, e o mesmo rei, do rei da Inglaterra.” 7
Isso não significa, é claro, que essa faixa de terra era tudo quanto Alan, ou William, ou Gilbert etc, “arrendavam”. De forma alguma. O feudo em si podia ser a única propriedade de um cavaleiro, ou uma pequena parcela de um grande domínio que constituía parte de um feudo, ou uma imensa concessão de terra. Alguns nobres possuíam vários feudos, outros alguns do-mínios, e outros um número de feudos espalhados por lugares diferentes. Na Inglaterra, por exemplo, um barão rico tinha pro-priedades formadas de cerca de 790 arrendamentos. Na Itália, vários grandes senhores possuíam cerca de 10 mil feudos. Sem dúvida, o rei, que nominalmente era o dono de toda a terra, pos-suía várias propriedades espalhadas por todo o país. As pessoas que arrendavam diretamente ao rei, fossem nobres ou cidadãos comuns, eram chamadas “principais arrendatários”.
À medida que o tempo corria, as propriedades maiores ten-diam a ser divididas em arrendamentos menores, mantidos por um número cada vez maior de nobres de uma linhagem ou de outra. Por que? Simplesmente porque os senhores descobriram a necessidade de ter tantos vassalos quantos pudessem, e a úni-ca forma de o conseguir era cedendo parte de sua terra.
Hoje em dia, terras, fábricas, usinas, minas, rodovias, bar-cos e maquinaria de todo tipo são necessários à produção das mercadorias que utilizamos, e chamamos um homem de rico pelos bens desse tipo que possui. Mas no período feudal, a terra produzia praticamente todas as mercadorias de que se necessi-tava e, assim, a terra e apenas a terra era a chave da fortuna de um homem. A medida de riqueza era determinada por um úni-co fator — a quantidade de terra. Esta era, portanto, disputa da continuamente, não sendo por isso de surpreender que o perío-do feudal tenha sido um período de guerra. Para vencer as guerras, era preciso aliciar tanta gente quanto possível, e a forma de fazê-lo era contratar guerreiros, concedendo-lhes ter-ra em troca de certos pagamentos e promessa de auxílio, quan-do necessário. Assim, por um antigo documento francês do ano 1200, soubemos que “Eu, Thiebault, conde palatino de Troyes,
dou a conhecer para o presente e futuro que concedi em honorá-rios a Jocelyn d’Avalon e seus herdeiros o feudo que se deno-mina Gillencourt... O mesmo Jocelyn, além disso, por esse mo-tivo, tomou-se meu vassalo.” 8
Como “vassalo” do conde, provavelmente esperava-se de Jocelyn, entre outras coisas, que prestasse serviços militares a seu senhor. Talvez tivesse que prover um certo número de ho-mens inteiramente armados e equipados, por um número espe-cífico de dias. Os serviços de um cavaleiro na Inglaterra e França geralmente consistiam de 40 dias, mas contratavam-se homens para prestar apenas metade do serviço a que o cava lei-ro era obrigado, ou um quarto etc. No ano 1272 o rei francês estava em guerra e, assim, convocou seus arrendatários milita-res para o exército real. Alguns atenderam à convocação e cumpriram seu dever no devido tempo, outros enviaram substi-tutos. “Reginald Trihan, cavaleiro, compareceu pessoalmente a marcha [exército]. William de Coynères, cavaleiro, envia em seu lugar Thomaz Chocquet, por 10 dias. John de Chanteleu, cavaleiro, compareceu declarando estar obrigado a 10 dias de serviço, e também comparecer por Godardus de Godardville cavaleiro, obrigado a 40 dias.” 9
Os príncipes e nobres que mantinham terras em troca de serviço militar concediam-nas, por sua vez, a outros, nas mesmas condições. Os direitos contraídos e os deveres em que incorriam variavam consideravelmente, mas eram quase os mesmos na Europa ocidental e uma parte da Europa central. Os arrendatários não podiam dispor da terra como desejassem, pois tinham que obter o consentimento de seus senhores, e pa-gar certos impostos, se a transferissem a outrem. Do mesmo modo que o herdeiro das terras arrendadas a um serviço tinha que pagar uma taxa ao senhor do feudo, ao tomar posse de sua herança, assim o herdeiro de um senhor tinha que pagar uma taxa de herança a seu senhor imediato. Se um arrendatário morria e o herdeiro não completara a idade de entrar em posse da herança, então o senhor tomava conta da terra, até que ele atingisse a maioridade. A teoria era de que o herdeiro menor não seria capaz de cumprir os deveres sob os quais a terra era arrendada e assim o senhor dela se encarregava até que ele a-tingisse a maioridade — e nesse meio tempo guardava todos os lucros.
Os herdeiros mulheres tinham que obter o consentimento do senhor para casar. Em 1221, a Condessa de Nevers assim reco-nheceu esse fato: “Eu, Matilda, Condessa de Nevers, dou a co-nhecer a todos quantos vejam esta carta que jurei sobre o sagra-do Evangelho a meu senhor mais querido, Philip, pela graça de Deus o ilustre rei de França, que lhe prestarei serviços bons e fiéis contra todos os homens e mulheres vivos, e que não casarei senão por sua vontade e graça.” 10
Se uma viúva desejava casar-se outra vez, deveria ser paga uma multa a seu senhor, segundo constatamos deste registro in-glês datado de 1316, referente à viúva de um arrendatário: “O rei a todos quem etc, saudação. Sabei que, por uma multa de 100 xelins que... nos foi paga por Joan, ex-mulher de Simon Darches, falecido, a quem concedêramos a honra das terras de Wallingford, damos a licença à mesma Joan para casar-se com quem deseje, desde que nos esteja sujeito.” 11
Por outro lado, se uma viúva não queria casar-se outra vez, tinha que pagar para não ser obrigada a fazê-lo, segundo a von-tade de seu senhor. “Alice, Condessa de Warwick, presta contas de 1.000 libras e 10 palafréns para que lhe seja permitido per-manecer viúva por tanto tempo quanto o desejar, e não ser obri-gada a casar-se pela vontade do rei.” 12
Esses eram alguns dos deveres a que um vassalo estava o-brigado para com o seu senhor feudal, em troca da terra e prote-ção que recebia. Havia outros. Se o senhor era tomado como re-fém por um inimigo, estava entendido que seus vassalos ajuda-riam a pagar por sua libertação. Quando o filho do senhor era sagrado cavaleiro, devia, pelo costume, receber uma “ajuda” de seus vassalos — talvez para pagar as despesas das festividades comemorativas, Em 1254, um homem chamado Baldwin se o-pôs a efetuar esse pagamento porque, alegou, o rei, cujo filho estava sendo sagrado cavaleiro, não era seu senhor imediato. Venceu a questão nessa base, de acordo com os anais do Tesou-ro inglês: “Concede-se mandato ao corregedor de Worcester de que se Baldwin de Frivil não arrenda diretamente ao rei in capite [isto é, do mais poderoso] mas de Alexander de Abetot e Alexander de William de Beauchamp, e William do bispo de Worcester, e o bispo do rei in capite como o mesmo Bald-win diz, então o mencionado Baldwin ficará livre da obriga-ção que lhe foi imposta para o auxílio a armar cavaleiro o fi-lho do rei. “ 13
Observe-se que entre Baldwin e o rei havia a série habitual de senhores. Observe-se também que um deles era o bispo de Worcester. Isto constitui um fato importante, mostrando que a Igreja era parte e membro desse sistema feudal. Sob certos as-pectos, não era tão importante quanto o homem acima de to-dos, o rei, mas sob outros o era muito mais. A Igreja constituía uma organização que se estendeu por todo o mundo cristão, mais poderosa, maior, mais antiga e duradoura que qualquer coroa. Tratava-se de uma era religiosa e a igreja, sem dúvida, tinha um poder e prestígio espiritual tremendos. Mas, além disso, tinha riqueza, no único sentido que prevalecia na época — em terras.
A Igreja foi a maior proprietária de terras no período feu-dal. Homens preocupados com a espécie de vida que tinham levado e desejosos de passar para o lado direito de Deus antes de morrer, doavam terras à Igreja; outras pessoas, achando que a igreja realizava uma grande obra de assistência aos doentes e aos pobres, desejando ajudá-la nessa tarefa, davam-lhe terras; alguns nobres e reis criaram o hábito de, sempre que venciam uma guerra e se apoderavam das terras do inimigo, doar parte delas à Igreja; por esses e por outros meios a igreja aumentava suas terras, até que se tornou proprietária de entre um terço e metade de todas as terras da Europa ocidental.
Bispos e abades se situaram na estrutura feudal da mesma forma que condes e duques. Esta concessão de um feudo ao Bispo de Beauvais em 1167 é prova disso: “Eu, Louis, pela gra-ça de Deus rei de França, torno público a todos os presentes, bem como aos que virão, que em Mante, em nossa presença, o Conde Henry de Champagne concedeu o feudo de Savigny a Bartolomeu, Bispo de Beauvais, e seus sucessores. E por aquele
feudo o mencionado bispo empenhou a palavra e assumiu o compromisso de cavaleiro de servir com justiça ao Conde Hen-ry; e também concordou em que os bispos que lhe sucederem procederão igualmente.” 14
E exatamente como recebia a terra de um senhor, também a Igreja agia, ela própria, como senhor: “O abade Faurício tam-bém cedeu a Robert, filho de Williain Mauduit, as terras de qua-tro jeiras * em Weston... a serem mantidas como feudo. E pres-tará serviço em pagamento, isto é: sempre que a igreja de A-bingdon prestar seu serviço ao rei, ele fará metade desse serviço pela mesma igreja.” 15
Nos primórdios do feudalismo, a Igreja foi um elemento di-nâmico e progressista. Preservou muito da cultura do Império Romano. Incentivou o ensino e fundou escolas. Ajudou os po-bres, cuidou das crianças desamparadas em seus orfanatos e construiu hospitais para os doentes. Em geral, os senhores ecle-siásticos (da Igreja) administravam melhor suas propriedades e aproveitavam muito mais suas terras que a nobreza leiga.
Mas há outro aspecto da questão. Enquanto os nobres divi-diam suas propriedades, a fim de atrair simpatizantes, a Igreja adquiria mais e mais terras. Uma das razões por que se proibia o casamento aos padres era simplesmente porque os chefes da I-greja não desejavam perder quaisquer terras da Igreja mediante herança aos filhos de seus funcionários. A Igreja também au-mentou seus domínios através do “dízimo”, 16 taxa de 10% so-bre a renda de todos os fiéis. Assim se refere a respeito um fa-moso historiador: “O dízimo constituía um imposto territorial, um imposto de renda e um, imposto de transmissão muito mais oneroso do que qualquer taxa conhecida nos tempos modernos. Agricultores e camponeses eram obrigados a entregar não ape-nas um décimo exato de toda sua produção... Cobravam-se dí-zimos de lã até mesmo da penugem dos gansos; à própria relva aparada ao longo da estrada pagava-se o direito de portagem; o colono que deduzia as despesas de trabalho antes de lançar o dí-zimo a suas colheitas era condenado ao inferno.” 17
À medida que a Igreja crescia enormemente em riqueza, sua economia apresentava tendências a superar sua importância es-piritual. Muitos historiadores argumentam que, como senhor feudal, não era melhor e, em muitos casos, muito pior do que os feudatários leigos. “Tão grande era a opressão de seus servos, pelo Cabido de Notre-Dame de Paris, no reinado de São Luís, que a Rainha Blanche protestou ‘com toda a humildade’, ao que os monges replicaram que ‘eles podiam matar seus servos de fome se lhes aprouvesse’.” 18
Alguns historiadores pensam até que se exagerava o valor de sua caridade. Admitem o fato de que a Igreja realmente aju-dava os pobres e doentes. Mas ressaltam que ela era o mais rico e poderoso proprietário de terras da Idade Média, e argumentam que, comparado ao que poderia ter feito, com sua tremenda ri-queza, não chegou a realizar nem mesmo tanto quanto a nobre-za. Ao mesmo tempo que suplicava e exigia ajuda dos ricos, pa-ra fazer sua caridade, tomava o maior cuidado em não sacar muito profundamente de seus próprios recursos. Esses críticos da Igreja observam ainda que, se ela não houvesse tratado tão mal a seus servos, não teria extorquido tanto do campesinato, e haveria menos necessidade de caridade.
O clero e a nobreza constituíam as classes governantes. Controlavam a terra e o poder que delas provinha. A Igreja prestava ajuda espiritual, enquanto a nobreza, proteção militar. Em troca exigiam pagamento das classes trabalhadoras, sob a forma de cultivo das terras. O Professor Boissonnade, compe-tente historiador desse período, assim o resume:
“O sistema feudal, em última análise, repousava sobre uma organização que, em troca de proteção, freqüentemente ilusória, deixava as classes trabalhadoras à mercê das classes parasitá-rias, e concedia a terra não a quem a cultivava, mas aos capazes de dela se apoderarem.” 19

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